Coccidioidomicose nos Estados Unidos: A carga invisível de uma micose respiratória negligenciada
A coccidioidomicose causa milhares de infecções e hospitalizações nos EUA anualmente, mas segue invisível para o sistema de vigilância. Entenda os dados alarmantes do estudo publicado em 2025.
Lucas W.S.Sousa
6/6/20254 min read


Novo estudo revela que a doença, popularmente conhecida como "Febre do Vale", é amplamente subnotificada e pode afetar centenas de milhares de pessoas todos os anos
A coccidioidomicose, ou "febre do vale" (Valley fever), é uma infecção fúngica respiratória causada pela inalação de esporos do gênero Coccidioides, comumente encontrados em solos áridos e semiáridos do sudoeste dos Estados Unidos, especialmente nos estados do Arizona e Califórnia. Embora muitos a tratem como uma infecção rara, um estudo recente de 2025 publicado pela revista JAMA Network Open mostra que a doença é vastamente subnotificada e possui impacto clínico e econômico muito maior do que se imaginava.
O desafio da subnotificação
Os registros oficiais de vigilância nos EUA reportam entre 10 mil e 20 mil casos de coccidioidomicose por ano. No entanto, a doença não é de notificação obrigatória em todos os estados, o que cria lacunas consideráveis na estimativa real de sua incidência. Mesmo onde há obrigatoriedade de notificação, vários fatores dificultam a detecção precisa:
Muitos pacientes com sintomas leves não procuram atendimento médico;
Profissionais de saúde fora das áreas endêmicas raramente suspeitam da doença;
Testes diagnósticos podem ser inacessíveis ou logisticamente complexos;
Nem todos os casos confirmados são reportados aos órgãos de saúde pública.
O modelo de estimativa do estudo
Para contornar essa subestimação, os autores do estudo de 2025 construíram um modelo epidemiológico que expande os dados de 2019 do sistema nacional de notificação de doenças (NNDSS). Como a doença era reportável em apenas 28 jurisdições, o modelo aplicou taxas médias de incidência de estados vizinhos com perfis epidemiológicos semelhantes para preencher lacunas dos estados sem notificação.
O país foi dividido em três níveis de endemicidade:
Alta (Arizona e Califórnia);
Baixa (Nevada, Novo México, Texas, Utah e Washington);
Desconhecida (demais estados + Distrito de Columbia).
Multiplicadores e simulações
Para estimar o número real de casos, foram aplicados multiplicadores que corrigem quatro fontes de subestimação:
Baixa procura por serviço de saúde;
Diagnóstico incorreto;
Falta de notificação;
Sub registro de óbitos hospitalares.
Esses fatores foram quantificados com base na literatura científica e validados por especialistas usando o método Delphi. A estimativa final foi obtida por meio de 100 mil simulações de Monte Carlo, fornecendo intervalos de confiança de 95%.
Resultados alarmantes
O modelo revelou que, em 2019, ocorreram aproximadamente 273 mil casos sintomáticos de coccidioidomicose nos EUA (intervalo de confiança: 206 mil a 360 mil), um número 10 a 18 vezes maior do que o oficialmente registrado. Destes:
125 mil casos ocorreram apenas no Arizona e Califórnia;
103 mil foram registrados em estados com endemicidade desconhecida.
Esses dados destacam que a doença está se espalhando para além das regiões tradicionalmente endêmicas, impulsionada por fatores como mobilidade populacional e mudanças ambientais.
Hospitalizações e mortes
Com base nos dados modelados, estima-se que a doença tenha causado em 2019:
23 mil hospitalizações (18 mil a 28 mil);
900 óbitos (700 a 1.100).
As taxas por 100 mil habitantes foram:
7 hospitalizações e 0,3 mortes no panorama nacional;
26 hospitalizações e 1,1 mortes nos estados de alta endemicidade.
Nos estados sem notificação obrigatória, os dados subestimam ainda mais os óbitos.
Impacto socioeconômico e qualidade de vida
Estudos anteriores apontam que a coccidioidomicose gera mais de US$ 385 milhões em custos médicos diretos e perdas de produtividade anualmente. Além disso:
75% dos pacientes relatam fadiga, dores e fraqueza que limitam atividades cotidianas;
5% a 10% evoluem para formas crônicas;
1% desenvolve a forma disseminada, que pode ser fatal.
Esses números reforçam que mesmo casos "leves" têm impacto duradouro na saúde e no bem-estar.
Limitações e recomendações
Os autores reconhecem limitações no modelo, como:
Viés na estimativa de multiplicadores;
Ausência de histórico de viagem (que poderia indicar exposição fora do estado de residência);
Heterogeneidade dentro dos estados não contemplada.
Apesar disso, a metodologia é comparável a outras estimativas de carga de doenças infecciosas subnotificadas.
Conclusão: Uma micose invisível
A coccidioidomicose permanece amplamente negligenciada fora do sudoeste dos EUA, mas pode estar presente em várias regiões com condições ambientais propícias. O estudo é um chamado à ação para:
Tornar a doença de notificação obrigatória em todo o país;
Ampliar o acesso a testes diagnósticos confiáveis;
Promover educação médica sobre a doença;
Monitorar como mudanças climáticas e mobilidade populacional afetam a distribuição da doença.
Reconhecer a coccidioidomicose como um problema nacional e não apenas regional é essencial para proteger a saúde da população e responder com eficiência a uma micose que, silenciosamente, já rivaliza em incidência com outras infecções respiratórias graves.
Referência:
WILLIAMS, J. et al. Burden of Coccidioidomycosis in the United States: A modeling study. JAMA Network Open, 2025.


Lucas W.S de Sousa, Biomédico Microbiologista editor e idealizador da página Microbiologia Clínica Brasil.